contrapor

já parou pra pensar no quanto a repetição nos atravessa sorrateiramente? reproduzir a mesma melodia criada ao longo da vida, mudando o tom aqui ou ali, desafinando – mas nunca reestruturando essencialmente a ordem dos acordes. repetição que não traz aprimoramento. na verdade, só reforça que as notas não soam como antes. não torna mais fácil cada reprodução. parece que o mundo quer provar que não existem outras formas de emitir sons, fora essa imposta pela experiência das relações passadas. há quem tenha medo da mudança, pois mudar significaria reorganizar toda uma construção melódica inscrita ao longo de anos de instrumentalização do corpo — e aí o instrumento continua buscando as mãos afirmativamente desafinadas, mas que curiosamente confortam o instrumento mudo. lembre-se, há outras formas de ser tocada: o toque dos dedos pode ser carícia ao invés de aperto; o da boca, sopro suave — não sucção. depois de escutar tanto o som emitido por tal instrumento, não me surpreende o fato do primeiro toque com a boca ter emitido nota tão precisa e comovente. nem todo mundo percebe que o instrumento deve ser escutado antes de ser tocado. toda vez. sugar arranca o ar, não a nota. contrapor: eis minha compulsão. pontuar contradição. colocar-se em paralelo, em contraste a uma contradição estabelecida e despercebida. ser tudo o que não são. ainda faltam pernas para andar sem apoiar-me no meu oposto. confrontar e confortar vão muito além de um jogo de palavras semelhantes. da confrontação ao conforto há de se deslocar um érre: a repetição. há quem diga que a mudança sufoca, causa sensação de afogamento ou de uma onda imensa que vem chocar-se contra a construção. a essas pessoas digo: o contraponto é a mistura organizada de duas melodias aparentemente incompatíveis. no mais íntimo, há uma melodia; lá por entre as partes mais íntimas — escondido no meio dos cabelos lisos —, o espaço para a composição de uma nova persiste. não se trata de variação de tom, mas de nova composição de tempo e de harmonia. a nova melodia nasce quando, juntos, o instrumento e o autor se tocam e se inscrevem. a relação de composição não é a mesma de sucção. nesta, o autor força o instrumento a emitir o som que bem entende — e faz o instrumento se culpar por repeti-lo. uma nova melodia impõe que a anterior não mais se repita. leva tempo. leva também esforço e entrega. leva silêncio. o instrumento também se cansa. demanda intervalo entre as execuções. o som sem culpa é tão mais leve... por enquanto a gente assobia e cantarola os versos que surgiram em meio a respirações complementares.